A linha que separa a conexão jurídica da mera coincidência fática foi o eixo da decisão das Câmaras Reunidas do Tribunal de Justiça do Amazonas, que, por unanimidade, julgaram procedente conflito de competência entre varas criminais de Manaus e fixaram que não cabe à Vara Especializada em Crimes de Uso e Tráfico de Entorpecentes (VECUTE) julgar investigação sobre organização criminosa e lavagem de dinheiro quando inexistente vínculo probatório concreto com o tráfico de drogas.
O caso, relatado pela Desembargadora Vânia Maria Marques Marinho, expôs o limite funcional da jurisdição especializada e reafirmou o princípio do juízo natural, previsto no artigo 5º, inciso LIII, da Constituição Federal.
O caso: entre o crime e o contexto
O conflito surgiu entre o Juízo da 1ª Vara Criminal de Manaus, que havia declinado competência à VECUTE, e esta última, que suscitou o conflito negativo, alegando não haver conexão entre os fatos investigados — lavagem de dinheiro e aquisição de armamentos — e a prática de tráfico ilícito de entorpecentes.
As investigações apuravam supostos delitos cometidos por integrantes da facção Comando Vermelho, tradicionalmente associada ao tráfico. No entanto, conforme destacou o acórdão, as condutas investigadas “circunscrevem-se à esfera da criminalidade organizada em sentido amplo, desvinculadas da prática, do fomento ou do favorecimento direto do tráfico de entorpecentes”.
A decisão seguiu parecer do Ministério Público, que também reconheceu não haver relação probatória entre as movimentações financeiras ilícitas apuradas e o comércio de drogas.
A conexão e seus limites
No voto condutor, a Desembargadora Vânia Maria Marques Marinho explicou que a competência da vara especializada não se estende automaticamente a todo e qualquer crime cometido por membros de facções criminosas, ainda que conhecidas pela atuação no tráfico.
Segundo a relatora, o artigo 76, inciso III, do Código de Processo Penal exige vínculo fático-probatório concreto entre os delitos, e não mera associação subjetiva entre os investigados:
“A mera origem comum da investigação ou a atuação em facção criminosa não autoriza, por si só, a tramitação perante juízo especializado, quando não configurada a imprescindível conexão probatória.”
A magistrada lembrou ainda que a própria Procuradoria-Geral de Justiça já havia decidido, em conflito de atribuições anterior, que os crimes de lavagem de dinheiro e integração de organização criminosa, se desvinculados do tráfico, devem ser processados pela vara criminal comum, conforme o artigo 101 da Lei Complementar Estadual nº 11/1993 e o artigo 29 da Lei Complementar nº 261/2023.
Decisão e tese firmada
Ao final, o colegiado conheceu e julgou procedente o conflito, fixando a competência do Juízo da 1ª Vara Criminal de Manaus para processar e julgar o caso.
A tese aprovada foi clara: “A competência da Vara Especializada em Crimes de Uso e Tráfico de Entorpecentes exige a demonstração de vínculo fático-probatório entre os delitos apurados e o tráfico ilícito de drogas. A mera atuação de integrantes de organização criminosa com envolvimento no tráfico não autoriza, por si só, a fixação da competência da Vara Especializada, quando os crimes sob investigação não guardam relação com a comercialização ou distribuição de entorpecentes.”
O alcance da decisão
Com esse entendimento, o Tribunal de Justiça do Amazonas reforça que o princípio da especialização deve ser interpretado restritivamente, sob pena de se desvirtuar a regra do juízo natural. A decisão também destaca o papel da conexão processual como instrumento de coerência probatória — e não como mecanismo de ampliação de competência.
No pano de fundo, a discussão remete ao desafio de equilibrar o enfrentamento à criminalidade organizada com as garantias estruturais do processo penal. A Justiça reconhece que, embora o fenômeno humano da delinquência coletiva imponha complexidade, a vinculação entre fatos e crimes não pode ser presumida — precisa ser provada.
Processo n. 0501608-48.2024.8.04.0001