A realização de transfusão de sangue contra a vontade expressa de paciente Testemunha de Jeová não gera, por si só, dever de indenizar quando comprovado risco iminente de morte, inexistência de alternativa terapêutica viável e atuação da equipe médica no estrito cumprimento do dever legal.
Com esse entendimento, a 8ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo reformou sentença e afastou a responsabilidade civil do Estado de São Paulo.
Por maioria de votos, em julgamento estendido, o colegiado deu provimento à apelação da Fazenda estadual para julgar improcedente a ação indenizatória ajuizada pela mãe de paciente falecida, que havia sido submetida a transfusões sanguíneas compulsórias em hospital público, apesar de reiterada recusa fundamentada em convicção religiosa.
Conflito entre direitos fundamentais
Relator do acórdão, o desembargador Percival Nogueira destacou que o ordenamento jurídico brasileiro assegura ao paciente o direito de recusar tratamentos médicos, inclusive transfusão de sangue, como expressão da liberdade de crença e da autonomia da vontade. Contudo, ponderou que tal proteção não é absoluta quando confrontada com o direito à vida, núcleo estruturante do sistema constitucional.
Segundo o voto vencedor, diante de quadro clínico extremamente grave — aplasia medular com anemia severa, plaquetopenia crítica e insuficiência respiratória — e após o esgotamento de métodos terapêuticos alternativos, competia ao Estado e aos profissionais de saúde agir para impedir a morte da paciente. Nessas circunstâncias, afirmou o relator, o consentimento negativo não é suficiente para afastar a atuação médica emergencial.
Limites do Tema 1069 do STF
O acórdão enfrentou diretamente o alcance do julgamento do Supremo Tribunal Federal no Tema 1069 da repercussão geral, que reconheceu o direito de pacientes adultos e capazes recusarem transfusão de sangue por motivos religiosos.
Para a corrente majoritária, o precedente do STF não se aplica indistintamente a situações de necessidade terapêutica ineludível e risco concreto e imediato à vida. O colegiado destacou que o Tema 1069 trata de hipóteses em que ainda há viabilidade técnico-científica de sucesso sem transfusão e anuência da equipe médica, o que não se verificou no caso concreto.
Nesse contexto, a Câmara assentou que o precedente não impede a atuação médica emergencial quando a transfusão constitui a única medida capaz de tentar reverter o quadro clínico fatal, sob pena de imputar aos profissionais omissão penalmente relevante.
Ausência de excesso e responsabilidade afastada
Outro ponto central do julgamento foi a inexistência de prova de excesso na conduta dos agentes públicos. O acórdão afastou as alegações de contenção física abusiva, sedação coercitiva ou tratamento desumano, destacando que os registros médicos indicavam confusão mental decorrente do estado clínico da paciente, e não violência institucional.
Diante disso, o Tribunal concluiu que a transfusão foi realizada como última alternativa terapêutica, em ambiente hospitalar, com decisão colegiada da equipe médica, não se configurando violação à dignidade da paciente nem dano moral indenizável à genitora.
Julgamento dividido
O julgamento contou com votos divergentes que defenderam a prevalência da autonomia da vontade e da liberdade religiosa mesmo em cenário de risco extremo, sustentando que a transfusão compulsória violaria a dignidade da pessoa humana e ensejaria responsabilidade civil do Estado. Prevaleceu, contudo, a tese de que, em situações-limite, o direito à vida justifica a intervenção médica sem consentimento, desde que ausente abuso.
Ao final, a 8ª Câmara reformou integralmente a sentença de primeiro grau, inverteu os ônus da sucumbência e julgou improcedente o pedido indenizatório.
Apelação Cível nº 1017941-45.2019.8.26.0562
