A proteção ambiental e o enfrentamento de grandes empreendimentos econômicos não afastam o dever do Estado de preservar modos de vida tradicionais quando os impactos superam os limites previstos no licenciamento. Com esse entendimento, a Justiça Federal determinou a revisão do regime de vazão de água adotado na usina hidrelétrica de Belo Monte, no Pará, para garantir a subsistência de comunidades ribeirinhas e indígenas da Volta Grande do Xingu.
A decisão foi proferida pela juíza federal Maíra Campos, da Vara Federal de Altamira (PA), em ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público Federal. A magistrada condenou a Norte Energia, responsável pela operação da usina, e o Ibama a revisarem o chamado “hidrograma de consenso”, adotado no processo de licenciamento ambiental, por considerá-lo insuficiente para assegurar a preservação dos ecossistemas, a pesca de subsistência, a navegação e o modo de vida das populações locais.
Segundo a sentença, os elementos probatórios reunidos no processo demonstram que os impactos ambientais e sociais decorrentes do desvio do curso do rio Xingu foram mais severos do que os inicialmente previstos nos estudos de impacto ambiental. Para a juíza, os estudos complementares apresentados pela concessionária não justificam a manutenção do hidrograma atualmente em vigor, diante da constatação de danos concretos e não mitigados.
A decisão determina que Norte Energia e Ibama constituam um grupo de trabalho, com participação efetiva de ribeirinhos, povos indígenas e outros representantes, para a definição de um novo regime de vazão. O novo hidrograma deverá respeitar os ciclos naturais de cheia e seca do rio, garantir a inundação das áreas de piracema e assegurar a qualidade da água na Volta Grande do Xingu. Caso o novo regime não seja apresentado no prazo fixado, poderá ser adotado o chamado “hidrograma de piracema”, elaborado por comunidades locais e pesquisadores.
Ao fundamentar a condenação, a magistrada destacou que o licenciamento ambiental não pode se tornar um instrumento de legitimação automática de impactos irreversíveis, sobretudo quando afetam diretamente populações tradicionais. Para a Justiça, o dever de proteção ambiental inclui a revisão de políticas e parâmetros técnicos sempre que se mostrem inadequados à realidade constatada após o início da operação do empreendimento.
A Norte Energia informou que irá recorrer da decisão e afirmou que defende o hidrograma atualmente adotado, sustentando que ele foi definido no processo de licenciamento conduzido pelo Estado brasileiro. O Ibama comunicou que foi notificado da sentença e que irá analisá-la para cumprimento das determinações judiciais.
A decisão reforça a orientação de que grandes projetos de infraestrutura, mesmo considerados estratégicos para o sistema energético nacional, permanecem sujeitos ao controle judicial quando comprovados efeitos socioambientais incompatíveis com a proteção constitucional conferida aos povos indígenas, ribeirinhos e ao meio ambiente.
