Apesar do salvo-conduto concedido pelo Tribunal de Justiça do Amazonas ter barrado a prisão preventiva da médica Juliana Brasil Santos e afastado a possibilidade de busca e apreensão em sua residência – medidas solicitadas pelo delegado Marcelo Martins, do 24º Distrito Integrado de Polícia -, o caso Benício Xavier de Freitas continua produzindo novos elementos investigativos, inclusive de diligências requeridas pelo Ministério Público do Amazonas.
A Polícia Civil afirma que as últimas oitivas revelaram pontos antes desconhecidos e que as circunstâncias do atendimento no Hospital Santa Júlia caminham para desdobramentos ainda em apuração.
Segundo o Delegado Martins, do 24º DIP, uma técnica de enfermagem relatou à Polícia que alertou a colega Raíza Bentes para não aplicar adrenalina por via intravenosa no menino Benício, de 6 anos, e que chegou a entregar o kit de nebulização indicado para o quadro clínico. Segundo ela, a advertência foi ignorada, e Raíza teria “teimado” em realizar a administração endovenosa — procedimento restrito a casos de parada cardiorrespiratória.
O depoimento reforça as contradições que já haviam motivado a acareação realizada anteriormente entre a médica e a técnica. Outras profissionais foram ouvidas na Delegacia de Polícia e as autoridades iniciaram uma perícia no sistema eletrônico do Hospital Santa Júlia para verificar se há falhas capazes de alterar automaticamente a via de administração registrada no prontuário, conforme alega a defesa de Juliana. O delegado classificou como “inidôneo” o vídeo apresentado pelos advogados para demonstrar a suposta falha, por ter sido produzido sem supervisão técnica.
Além disso, a investigação também analisa materiais informais encaminhados à autoridade policial, como capturas de tela de conversas atribuídas a membros da equipe de plantão. Esses registros mencionam reações imediatas diante do agravamento do quadro da criança e comunicação interna sobre o atendimento. Contudo, esses materiais ainda estão sob o crivo da necessidade de perícia para constatação de autenticidade.
Paralelamente ao avanço das investigações, segue válido o salvo-conduto expedido pelo TJ-AM, que impede a prisão preventiva da médica e o cumprimento de busca domiciliar. Na decisão, a desembargadora Onilza Abreu Gerth entendeu que, até esta fase preambular, não há elementos concretos e robustos que sustentem a imputação de homicídio doloso por dolo eventual. Para o Tribunal, a conduta adotada pela médica logo após perceber o erro — ao solicitar imediatamente o antídoto e acompanhar a criança até a UTI — é incompatível com a indiferença exigida para caracterização do dolo.
A decisão reproduz expressamente o critério jurídico que diferencia dolo eventual de culpa consciente, ponto central para o enquadramento penal do caso:
“O dolo eventual, conforme a teoria da vontade e do consentimento, exige que o agente, embora não queira diretamente o resultado, assuma o risco de produzi-lo, sendo-lhe indiferente a sua ocorrência. Distingue-se da culpa consciente, onde o agente prevê o resultado, mas acredita sinceramente que ele não ocorrerá. A linha divisória entre ambos é tênue, mas crucial para a correta tipificação penal”, escreveu a Desembargadora.
E, aplicando essa distinção ao caso concreto, o Tribunal concluiu: “A conduta da Paciente é incompatível com a indiferença ao resultado morte. Ao perceber o erro […], a Dra. Juliana agiu de forma imediata e proativa: solicitou o antídoto (Propranolol) e acompanhou pessoalmente a criança à UTI, afastando a ideia de que ela teria assumido o risco do óbito ou lhe fosse indiferente.”
Com isso, a tese de dolo eventual — inicialmente sustentada pela autoridade policial para justificar pedido de prisão preventiva — encontrou um limite processual nesta etapa inicial, funcionando como uma barreira preambular à imputação qualificada. A decisão, no entanto, não impede o prosseguimento da investigação, que segue agora concentrada em esclarecer a dinâmica entre prescrição, execução e eventual falha sistêmica do hospital.
A Polícia Civil continua ouvindo profissionais que participaram do atendimento e aguarda o laudo sobre o sistema eletrônico para consolidar a sequência de eventos que culminou na morte de Benício, na madrugada de 23 de novembro. A médica Juliana Brasil e a técnica Raíza Bentes seguem afastadas cautelarmente de suas funções enquanto o inquérito segue em andamento.



