A recusa administrativa em alterar a titularidade de unidade consumidora, mesmo diante de justo título apresentado pelo adquirente, configura falha na prestação do serviço quando a distribuidora impõe exigências desproporcionais que ultrapassam a razoabilidade administrativa.
No âmbito dos serviços públicos essenciais, o dever de continuidade e a boa-fé objetiva limitam o poder da concessionária de criar barreiras burocráticas que inviabilizam o uso regular do imóvel e, em certos casos, resultam em interrupções indevidas do fornecimento.
Essa moldura jurídica orientou sentença da juíza Vanessa Leite Mota, do Juizado Especial Cível de Manaus, que reconheceu o dever de indenizar da Amazonas Energia S.A. por negar a transferência de titularidade de uma unidade consumidora e suspender o fornecimento elétrico enquanto o consumidor tentava regularizar a situação. A magistrada julgou que o autor fez pedido procedente, fixando indenização por danos morais em R$ 3 mil.
Transferência negada apesar de contrato com firma reconhecida
O autor adquiriu o imóvel em maio de 2025 e, ao solicitar a transferência da titularidade em agosto do mesmo ano, apresentou contrato particular de compra e venda com firmas reconhecidas em cartório. Ainda assim, a concessionária indeferiu o pedido sob o argumento de que faltava comprovação da “capacidade legal dos vendedores”.
A juíza considerou a exigência “excessiva e burocrática”, destacando que o documento notarial era apto a demonstrar legitimidade para a transferência. Para a magistrada, a distribuidora “criou óbice indevido ao consumidor que, munido de justo título, buscou a via adequada para regularizar a fruição do serviço essencial”, contrariando a função instrumental do art. 138 da Resolução ANEEL nº 1.000/2021, que deve ser interpretado à luz da razoabilidade.
Corte durante obra configurou violação à continuidade do serviço
Enquanto o pedido de transferência ainda tramitava administrativamente, a Amazonas Energia efetuou o corte do fornecimento em 29 de agosto de 2025, em pleno processo de reforma do imóvel. Alegou tratar-se de “corte de autorreligado”, pois a unidade estaria oficialmente desligada desde 2015.
A justificativa não convenceu o juízo. A decisão afirma que, ainda que houvesse irregularidade pretérita, “o Autor agiu com boa-fé ao solicitar a regularização”, e a distribuidora deveria ter priorizado a instalação do novo medidor e a regularização cadastral, e não o corte abrupto do serviço.
A magistrada lembrou que a energia elétrica é serviço público essencial e sua continuidade é protegida pelo art. 22 do Código de Defesa do Consumidor. Cortar o fornecimento sem solução prévia para o problema documental — especialmente quando o consumidor já manifestara intenção de regularização — viola a boa-fé e a confiança legítima.
TJAM tem jurisprudência consolidada sobre o tema
A sentença cita precedente da Terceira Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Amazonas (Apelação 0734249-47.2020.8.04.0001), no qual a Corte reconheceu que a recusa injustificada de troca de titularidade constitui falha na prestação do serviço e gera dano moral indenizável, sobretudo quando o consumidor é compelido a solucionar problemas deixados por antigos proprietários.
Perda superveniente do objeto e danos morais fixados
Durante o curso da ação, a concessionária regularizou a titularidade e restabeleceu a energia, o que levou a juíza a declarar a perda do objeto quanto ao pedido de obrigação de fazer. Ainda assim, manteve-se a análise do dano moral, cujo prejuízo se deu antes da correção administrativa.
A juíza Vanessa Leite Mota fixou a indenização em R$ 3.000,00, valor considerado proporcional aos transtornos sofridos, especialmente porque as obras do imóvel ficaram paralisadas e o consumidor enfrentou uma “via crucis desnecessária” para exercer direito simples de alteração cadastral. Os juros de mora incidem desde a citação e a correção monetária, pelo INPC, a partir da sentença.
Processo nº 0242589-71.2025.8.04.1000
