Nem toda promessa pública tem força jurídica. No campo da desapropriação indireta — quando o poder público se apossa de um imóvel particular sem processo formal ou sem pagar a indenização devida — o direito de cobrar a reparação não dura para sempre. Ele prescreve, e o tempo só pode ser interrompido por atos do próprio Estado devedor ou do proprietário prejudicado. Ato de terceiro não conta.
Essa foi a essência da decisão do Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial n.º 2.014.545/AM, relatado pelo ministro Paulo Sérgio Domingues e confirmado pela Primeira Turma ao analisar um caso ocorrido no Amazonas. O Tribunal reafirmou que declarações ou compromissos assumidos por quem não representa o ente público responsável — mesmo quando expressam boa vontade — não interrompem o prazo de prescrição para pedir indenização.
A prescrição é o limite temporal para o exercício de um direito. Nas desapropriações indiretas, o prazo era de 20 anos segundo o Código Civil de 1916 (Súmula 119/STJ). Com o Código Civil de 2002, o prazo caiu para 10 anos, conforme o art. 1.238, parágrafo único, aplicado por analogia.
Mas essa mudança não tem efeito retroativo automático: a regra de transição (art. 2.028 do CC/02) prevê que o novo prazo só vale se menos da metade do prazo antigo ainda não tiver transcorrido quando o novo Código entrou em vigor, em 2003. E, mesmo assim, o tempo só pode ser zerado — ou seja, interrompido — por um ato válido, praticado por quem tem poder jurídico na relação.
Esses atos podem ser, por exemplo: o ajuizamento da ação judicial; o reconhecimento formal da dívida pelo próprio Estado; ou o protocolo de pedido administrativo de indenização, que suspende o prazo até a resposta da Administração (art. 4º do Decreto 20.910/32).
Atos de terceiros — ex-prefeitos, políticos, servidores sem competência legal — não têm o poder de interromper o prazo. Eles são juridicamente inócuos, porque não partem de quem realmente responde pela obrigação.
O caso do Amazonas
O processo teve origem em municipio do Amazonas, onde um terreno particular foi usado ainda no passado para a construção de uma escola pública estadual. O dono do imóvel nunca recebeu indenização e, décadas depois, seu espólio entrou na Justiça para cobrar o valor devido.
O Tribunal de Justiça do Amazonas havia afastado a prescrição e condenado o Estado a indenizar o espólio. O TJAM entendeu que o prazo de 20 anos tinha sido interrompido quando um ex-prefeito de Itacoatiara assinou uma declaração reconhecendo a dívida, e que o pedido administrativo feito anos antes também havia suspenso a contagem até a resposta do governo do Estado do Amazonas, negando o direito.
O caso chegou ao STJ, e o entendimento foi revertido. O ministro Paulo Sérgio Domingues explicou que a declaração do ex-prefeito não tinha validade jurídica, porque foi assinada por quem já não ocupava o cargo e por ente diverso do devedor. A ação foi movida contra o Estado do Amazonas, não contra o município — logo, não havia ato interruptivo válido.
“O reconhecimento da dívida por terceiro não configura nenhuma das hipóteses interruptivas previstas no art. 172 do Código Civil de 1916 (atual art. 202 do CC/2002)”, afirmou o relator. Como entre o decreto estadual que formalizou a incorporação do imóvel e o pedido administrativo se passaram mais de 20 anos, o STJ concluiu que o direito de indenização estava prescrito.
O tempo e o direito
A decisão reforça uma linha consolidada na jurisprudência: a prescrição é instrumento de segurança jurídica e não pode ser afastada por gestos de boa vontade. Em matéria de desapropriação indireta, o tempo continua correndo até que algo juridicamente relevante — um pedido, uma confissão formal, uma ação judicial — o interrompa ou suspenda.
REsp 2014545/AM
