A 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça admitiu a possibilidade de o juiz do inventário nomear um perito para atuar como inventariante digital — responsável por acessar dispositivos eletrônicos de pessoas falecidas, extrair apenas os dados relevantes ao inventário e preservar os direitos de personalidade.
O julgamento tratou de recurso especial interposto por inventariantes de uma família que morreu em um acidente de helicóptero em São Paulo, em 2016, e que buscavam acesso aos conteúdos de três tablets dos falecidos para identificar bens de valor econômico ou afetivo. O caso resultou na criação de um precedente inédito no tribunal (REsp 2.124.424).
Voto da relatora: proteção de dados pessoais
A ministra Nancy Andrighi, relatora, destacou que a abertura dos dispositivos poderia expor informações personalíssimas, protegidas por senha, a herdeiros, empresas ou até mesmo ao próprio Judiciário. Para evitar a violação da intimidade dos falecidos, defendeu que a função de perito especializado, batizada de “inventariante digital”, fosse instituída.
“Ele só ajuda o juiz naquilo que nós não temos: a expertise de abrir uma máquina dessa e arrolar minuciosamente tudo o que tem ali dentro, para então dizer o que pode ser transmitido ou não. Toda vez que tiver algo que viole os direitos de personalidade, o juiz não poderá transmitir”, afirmou Nancy.
O entendimento foi acompanhado pelos ministros Humberto Martins, Moura Ribeiro e Daniela Teixeira.
Divergência vencida
O ministro Ricardo Villas Bôas Cueva abriu divergência. Para ele, não havia motivo para diferenciar herança analógica da digital, já que os herdeiros, ao acessar documentos físicos, também podem se deparar com informações pessoais e são responsáveis por resguardar a memória do falecido.
Segundo o ministro, a solução seria impor segredo de Justiça ao processo ou responsabilizar eventuais abusos com base na responsabilidade civil, sem necessidade de criar uma figura intermediária.
“Uma carta privada deixada pelo falecido poderá ser aberta pelos herdeiros, enquanto o acesso a uma comunicação eletrônica terá tratamento diferenciado”, apontou Cueva.
Ainda assim, o ministro admitiu que, se o juízo de primeiro grau entendesse necessário, poderia instaurar incidente processual para avaliação dos bens digitais, com auxílio de perito especializado.
Desdobramentos do caso
As instâncias ordinárias haviam rejeitado pedido das inventariantes para que fosse expedido novo ofício à Apple, alegando que a medida envolveria questão de alta indagação, exigindo ação própria. A 3ª Turma afastou esse entendimento e reconheceu que a análise do conteúdo dos dispositivos pode ser realizada no próprio inventário.
Com a decisão, o STJ inaugura a possibilidade de nomeação de um inventariante digital como instrumento de equilíbrio entre a proteção dos direitos da personalidade e a necessidade de identificar bens patrimoniais no âmbito sucessório.