Nem toda norma nasce da lei — e nem toda multa depende de previsão literal em estatuto legal. No campo do direito regulatório, o Superior Tribunal de Justiça voltou a afirmar que as agências reguladoras possuem poder normativo próprio, legitimado por lei e pelo princípio da especialidade técnica, para disciplinar e punir condutas no âmbito de suas competências.
O entendimento foi consolidado no julgamento do Agravo Interno nos Embargos de Declaração no Recurso Especial nº 1.956.579/DF, relatado pelo ministro Benedito Gonçalves e julgado neste ano de 2025 pela Primeira Turma. O caso envolveu a Amazonas Energia S.A., que questionava multas aplicadas pela Aneel com fundamento em resoluções da própria agência.
O fenômeno jurídico: o poder normativo das agências
Criadas a partir dos anos 1990 para regular setores estratégicos — como energia, telecomunicações e transportes —, as agências reguladoras federais são autarquias de regime especial dotadas de autonomia técnica e decisória. Seu papel não é apenas fiscalizar, mas regulamentar a execução de serviços públicos delegados, ajustando as normas gerais da lei às particularidades técnicas de cada setor.
Esse poder normativo, também chamado de poder regulamentar derivado ou setorial, tem respaldo nas leis instituidoras de cada agência — no caso da Aneel, a Lei 9.427/1996, que autoriza expressamente a edição de regulamentos, resoluções e instruções normativas.
O STJ tem reiterado que essa delegação não ofende o princípio da legalidade (art. 37 da Constituição), pois decorre da própria lei e serve para viabilizar o cumprimento de políticas públicas de alta complexidade técnica. Na prática, significa que a ausência de uma previsão expressa em lei não impede a validade da sanção administrativa, se houver autorização legal para que a agência discipline a matéria por regulamento.
O caso do Amazonas
A Amazonas Energia recorreu ao STJ alegando que as multas impostas pela Aneel violavam o princípio da legalidade, por se basearem em resoluções infralegais. A defesa sustentava que somente a lei poderia tipificar infrações e definir penalidades, e que a Aneel teria extrapolado seu poder regulamentar.
O relator, ministro Benedito Gonçalves, afastou essa tese e destacou que o Supremo Tribunal Federal, em precedentes recentes, já reconheceu que a legalidade em matéria regulatória é de natureza infraconstitucional, e que o controle judicial sobre atos técnicos deve respeitar os limites da deferência administrativa.
Em seu voto, Benedito Gonçalves reafirmou que “as agências reguladoras foram criadas para regular, em sentido amplo, os serviços públicos. Há previsão nas legislações ordinárias delegando a essas entidades competência para editar normas e regulamentos em seus âmbitos de atuação. Não há, portanto, violação ao princípio da legalidade na aplicação de multas baseadas em resoluções.”
O entendimento foi unânime na Primeira Turma, acompanhando precedentes das Turmas de Direito Público do STJ — como os julgamentos dos REsp 1.807.533/RN, 1.706.379/RJ e 1.620.459/RS.
A decisão do STJ atendeu a um recurso da Aneel, reformando o acórdão do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, que havia anulado as penalidades impostas à concessionária. Contra essa posição, a Amazonas Energia apresentou embargos de declaração, alegando omissão no julgamento e defendendo que o recurso da agência não poderia sequer ter sido conhecido, por ausência de demonstração da divergência.
REsp 1956579/DF
