A supressão do nome do ofendido e de expressões racistas em uma postagem na internet não afastam o seu teor discriminatório e nem eximem de responsabilidade o ofensor, se o contexto da publicação for claro quanto ao destinatário e à intenção preconceituosa de quem a fez.
Com essa fundamentação, a 5ª Turma Recursal Cível do Tribunal de Justiça de São Paulo negou provimento ao recurso inominado de Marcos Antônio Semann, ex-vereador de Eldorado (SP). Ele foi condenado a indenizar em R$ 20 mil, por dano moral, o atual prefeito do município, Noel Castelo (Solidariedade).
“O comentário postado nas redes sociais teve o objetivo nítido de tirar a credibilidade da atuação política do autor, por meio de ofensa racial, e de discriminá-lo perante a população local”, anotou o juiz Renato Guanaes Simões Thomsen, relator do recurso. Para ele, o réu excedeu os limites da liberdade de expressão e violou a honra subjetiva e a dignidade pessoal do prefeito, tuteladas pela Constituição Federal no artigo 5º, inciso X.
No caso dos autos, no dia 20 de janeiro deste ano, um munícipe criticou em seu perfil no Facebook a poda de árvores promovida pela prefeitura na entrada da cidade. A postagem gerou vários comentários contra e a favor da medida. Um deles foi o do ex-vereador, que disparou: “Quando não caga na entrada caga na saída cagaram na entrada kkkkk (sic)”.
Noel Castelo é negro e se autodeclara quilombola. Ele ajuizou ação de indenização por danos morais cumulada com pedido de publicação de retratação. O valor indenizatório fixado na sentença e mantido no acórdão foi exatamente o pleiteado pela sua advogada.
Thomsen frisou que a omissão do nome do prefeito e da palavra “preto” no comentário do réu não afasta o caráter racista da publicação e nem o dever de indenizar. Por essa razão, ele ratificou a sentença, pelos seus próprios fundamentos, inclusive quanto à obrigação de retratação imposta ao ex-vereador na mesma rede social. Os juízes Rogério Márcio Teixeira e Marcos Alexandre Bronzatto Pagan seguiram o relator.
Análise histórica
A advogada do prefeito expôs na inicial que, conforme uma análise histórica, a frase publicada pelo réu no Facebook, mesmo com a supressão da palavra “preto”, não deixa dúvidas de que ela é a mesma “comumente utilizada pelos antigos coronéis, visando justificar o erro do negro escravizado no trabalho”.
Karen Costa classificou o comentário do ex-vereador como “ataque racista” que se valeu de frase notoriamente conhecida para “condenar erros de pessoas pretas”. Segundo ela, a discriminação ficou ainda mais evidente com o “tom sarcástico utilizado pelos ‘kkkkk’”, tendo o efeito potencializado por ocorrer por meio da internet e atingir pessoa pública.
O ex-vereador alegou que não mencionou o nome do prefeito, não utilizou a palavra “preto” ou “negro” e que a postagem não era diretamente direcionada ao chefe do Executivo, mas ao “contexto político”. Porém, a juíza Hallana Duarte Miranda, do Juizado Especial Cível e Criminal de Eldorado, rejeitou a tese de que o comentário não foi racista e não teve como alvo Noel Castelo.
“Seu argumento de que não houve o uso das palavras racistas não pode ser acolhido, justamente porque, neste caso, me parece que a supressão das palavras ‘preto’ ou ‘negro’ ocorreu justamente para evitar maiores repercussões, já que o contexto da expressão é amplamente conhecido e poderia, aí sim, evidenciar a prática racista”, concluiu Hallana.
Segundo a julgadora, o Protocolo de Julgamento com Perspectiva Racial, do Conselho Nacional de Justiça, prevê que a discriminação também decorre de “distinção, exclusão, restrição ou preferência”. Assim, a responsabilidade civil e o dever de indenizar prescindem de qualquer intenção. O ofensor havia alegado falta de dolo difamatório.
“A questão é sensível e deve ser olhada com acuidade, inicialmente porque a postagem deve ser verificada no seu contexto e, por outro lado, porque a responsabilidade civil por atos de cunho racial encontra óbice na própria história de escravização do país, que por quase 400 anos recebeu pessoas negras traficadas, além de ter sido o último a abolir a escravização”, afirmou Hallana.
O fato de o réu ter ocupado cargo público, para a julgadora, torna a sua conduta “ainda mais ilícita”, sendo irrelevante, no caso em exame, não ter citado o nome do prefeito. Segundo ela, “parece bastante evidente” que o ex-vereador se referiu ao autor e, na sua crítica à administração, “utilizou-se de elemento racista, também numa metáfora, já que o ato foi realizado na entrada da cidade”.
Processo 1000085-64.2025.8.26.0172
Com informações do Conjur
