O juiz Ronnie Frank Torres Stone, da 1ª Vara da Fazenda Pública de Manaus, decidiu que o Estado do Amazonas não pode negar aposentadoria a antigo serventuário do Judiciário sob o argumento de ausência de documentos funcionais — especialmente quando o próprio Poder Público tinha o dever legal de preservar tais registros e garantir sua integridade ao longo do tempo.
A sentença, que julgou procedente a ação e concedeu tutela antecipada, determinou que a Amazonprev implemente imediatamente os proventos integrais de aposentadoria do requerente, baseados no enquadramento correspondente ao cargo para o qual ingressou por concurso no início da década de 1970. Os valores serão devidos retroativamente, observada a prescrição quinquenal.
Fenômeno jurídico: o dever estatal de guarda documental e a impossibilidade de prejudicar o servidor por falha administrativa
O ponto central da decisão reside na afirmação de que a Administração Pública — no caso, o Tribunal de Justiça do Amazonas — sempre teve o dever de manter, preservar e arquivar integralmente os documentos funcionais relacionados ao ingresso, movimentações e tempo de serviço dos serventuários admitidos no regime pré-Constituição de 1988.
Ao enfrentar a alegação da Amazonprev de que “não havia documentos sobre fatos de 50 anos atrás”, o juiz foi categórico: O extravio de documentos não pode ser utilizado para negar direito previdenciário, pois cabe ao Estado assumir as consequências de sua própria falha administrativa.
Segundo a sentença, a ausência de registros não significa inexistência de vínculo, mas sim descumprimento da obrigação estatal de conservar informações essenciais sobre seus servidores — obrigação essa que não pode ser transferida ao cidadão.
O regime híbrido dos antigos serventuários e o vínculo estatutário preservado pela Constituição
O juiz dedicou extensa fundamentação para reconstituir o contexto histórico da organização judiciária do Amazonas nas décadas anteriores à Constituição de 1988, esclarecendo que as atividades judiciais e extrajudiciais eram exercidas de forma híbrida; o ingresso ocorria mediante concurso público para o cargo de “Escrivão Judicial e Anexos”; esses cargos abrangiam função judicial (escrivania) e atividades anexas como tabelionato e registro civil, tudo sob a denominação de serventuário; a legislação estadual da época (Leis nº 181/1964 e nº 1.503/1981) tratava essas atividades como cargos públicos, com vitaliciedade, promoções e direitos estatutários.
Assim, ainda que a Constituição de 1988 tenha separado os serviços judiciais e extrajudiciais e privatizado o notariado (art. 236), o magistrado destacou que os serventuários antigos tiveram seus direitos preservados pelo art. 31 do ADCT, que assegura respeito às situações constituídas antes da nova ordem constitucional.
A improcedência da tese da Amazonprev
Na contestação, a Amazonprev argumentou que o requerente não teria direito à aposentadoria porque seria apenas “serventuário”, sem vínculo efetivo, sem cargo público e sem integração ao Regime Próprio de Previdência do Estado.
A sentença rejeitou integralmente essa tese, afirmando que o requerente ingressou em cargo de natureza estatutária, com base legal expressa; o vínculo era funcional e público, não uma delegação privada; a ausência de registros previdenciários na Amazonprev é explicável, pois o Judiciário só migrou para a autarquia a partir de 2019; até então, cabia ao TJAM controlar e arquivar toda documentação funcional.
Reconhecimento do direito e concessão de tutela
Com base na trajetória funcional demonstrada nos autos e no histórico legislativo, o juiz concluiu pela existência de vínculo estatutário pleno e reconheceu o direito à aposentadoria com proventos integrais, fixando o valor conforme o enquadramento previsto na legislação de cargos e salários vigente.
A tutela antecipatória foi concedida em razão do caráter alimentar da verba; da plausibilidade jurídica plena do pedido; e da necessidade de evitar prejuízo irreversível. A sentença determinou implementação imediata da aposentadoria pela Amazonprev; pagamento das parcelas retroativas, com correção pelo IPCA-E (Tema 810/STF) e juros conforme Portaria 1.855/2016-TJAM; custas a cargo do Estado (com isenção legal); honorários definidos na fase de liquidação. O processo segue agora para cumprimento de sentença.
Autos nº: 0433225-18.2024.8.04.0001
