A ênfase judicial na fronteira entre o “mero aborrecimento” e o verdadeiro prejuízo à esfera pessoal do consumidor voltou ao centro do debate no Amazonas. Em sentença proferida no Juizado Especial Cível, o juiz Celso Antunes da Silveira Filho reconheceu que o volume insistente e reiterado de ligações publicitárias — mesmo após manifestações expressas de desinteresse e tentativas de bloqueio — constitui publicidade abusiva e dano moral indenizável.
O caso examinado mostra um fenômeno recorrente: a ultrapassagem da fronteira entre a oferta comercial legítima e a perseguição telefônica praticada por empresas de telemarketing. A intensidade, cadência e desrespeito às tentativas de interrupção transformam o que seria uma simples oferta em violação direta à paz, ao tempo e à autodeterminação do usuário da linha.
A conduta abusiva e a falha de serviço
A autora relatou ter recebido dezenas de ligações diárias, em horários diversos, inclusive à noite e fins de semana, partindo de múltiplos números vinculados à empresa TMKT Serviços de Marketing Ltda., oferecendo planos e produtos que ela jamais solicitou.
Mesmo após bloquear números, informar expressamente que não tinha interesse e consultar a origem das chamadas, as ligações continuaram, configurando padrão de reiteração que o magistrado enquadrou como publicidade abusiva, nos termos do art. 39, III, do Código de Defesa do Consumidor.
O juízo destacou que a empresa: não negou de maneira eficaz ser responsável pelos números; não produziu contraprova capaz de demonstrar atuação legítima ou culpa de terceiros; não adotou qualquer medida para interromper as chamadas. Aplicou-se, então, a responsabilidade objetiva prevista no art. 14 do CDC e a inversão do ônus da prova, dada a hipossuficiência técnica da consumidora e a verossimilhança dos registros apresentados.
O ponto de inflexão: quando a insistência vira dano moral
A sentença afastou o argumento de “mero aborrecimento”, identificando no caso um acúmulo de falhas reiteradas e persistentes, agravado pelo desrespeito às tentativas de interrupção. Segundo o juiz: as ligações eram numerosas e contínuas; interferiam no descanso, no convívio familiar e no trabalho; demandaram energia e tempo da consumidora para bloquear, registrar, reclamar e tentar identificar a origem das chamadas.
O magistrado destacou que, quando o fornecedor persiste no erro mesmo após alerta formal, o comportamento deixa de ser simples equívoco operacional e passa a configurar abuso de direito, violando a boa-fé objetiva e justificando reparação.
Condenação imposta
O juízo julgou parcialmente procedente a ação e determinou: proibição imediata de novas ligações publicitárias ao número da consumidora, sob pena de multa diária de R$ 200 por ligação, limitada a 30 ocorrências; indenização de R$ 4.000,00 por danos morais, com juros desde a citação e correção pelo INPC.
Fenômeno jurídico: a linha tênue entre oferta e assédio telefônico
A sentença reflete movimento crescente na jurisprudência brasileira: a caracterização do assédio comercial telefônico como violação à paz privada do consumidor, especialmente quando transcende o razoável e compromete atividades pessoais e laborais.
