A 1ª Vara Federal Cível da Seção Judiciária do Amazonas anulou o indeferimento da Fundação Getúlio Vargas (FGV) que havia barrado a inscrição de um candidato nas vagas destinadas a pessoas negras no Exame Nacional da Magistratura (ENAM). A sentença, ao confirmar liminar anteriormente deferida, afirma que a banca examinadora exigiu cumulativamente documentos que o próprio edital tratava como alternativas, incorrendo em formalismo excessivo e desvio da finalidade das políticas afirmativas.
Segundo os autos, o edital oferecia dois caminhos distintos para comprovação da condição racial. O primeiro autorizava o candidato a apresentar declaração de heteroidentificação emitida pelo Tribunal de Justiça de seu estado, após avaliação fenotípica por comissão especializada. O segundo dispensava essa etapa apenas para quem já havia sido aprovado no procedimento do 1º ENAM, permitindo o reaproveitamento daquele parecer.
O candidato, autor do pedido, se enquadrava claramente na primeira hipótese. Ele passou pela comissão do Tribunal de Justiça do Amazonas, foi reconhecido como pessoa negra e apresentou documento formal emitido pelo TJAM em agosto de 2024, válido para o certame. Ainda assim, a FGV indeferiu sua inscrição sob o argumento de que faltava o comprovante de deferimento do 1º ENAM — documento impossível para quem não participou daquela edição. O juiz classificou a exigência como “manifestamente descabida” e incompatível com o texto editalício.
A sentença destaca que a vinculação ao edital não autoriza interpretações que desvirtuem sua finalidade. O Poder Judiciário, embora deva atuar com autocontenção no controle de concursos públicos, não se furta de intervir quando o ato administrativo abandona a legalidade e colide com princípios estruturantes, como o da razoabilidade, o da isonomia e, sobretudo, o da finalidade, que orienta as políticas de cotas raciais.
Para o magistrado, a atuação da banca transformou um procedimento técnico de heteroidentificação — concebido para assegurar a efetividade das ações afirmativas — em um obstáculo burocrático sem lastro jurídico. Ao exigir cumulativamente duas vias que a própria norma tratava como alternativas, a FGV acabou por inviabilizar o exercício legítimo de um direito já reconhecido por comissão oficial de heteroidentificação, restando configurado o formalismo que oprime, e não o que organiza.
A decisão lembra que as cotas raciais nos concursos da magistratura não são um gesto de benevolência, mas política pública constitucionalmente orientada para corrigir desigualdades históricas. A correção judicial, nesse contexto, não invade o mérito administrativo: apenas restabelece a coerência interna da norma e impede que a literalidade seja distorcida para frustrar a finalidade do próprio edital.
Ao final, o juiz julgou procedente a ação, anulou o indeferimento e determinou que a FGV e a União garantam a inscrição do candidato na cota racial, reconhecendo a plena validade do parecer de heteroidentificação emitido pelo TJAM. Os réus foram condenados de forma solidária ao pagamento dos honorários advocatícios e custas, mantida a gratuidade de justiça deferida ao autor.
Processo 1034851-46.2024.4.01.3200
