Por João de Holanda Farias, Advogado
No Direito Penal, o resultado — por mais trágico que seja — não basta para definir a natureza da responsabilidade criminal. Entre a morte e a imputação dolosa, existe um elemento indispensável e muitas vezes ignorado no debate público: a indiferença do agente em relação ao resultado. É esse componente subjetivo que separa o dolo eventual da culpa consciente e impede que o clamor social substitua a análise jurídica.
O caso da morte do menino Benício, em Manaus, recolocou essa distinção no centro da discussão. A derrubada do habeas corpus que havia concedido salvo-conduto à médica investigada reabriu o debate público, mas não resolveu a questão essencial do ponto de vista penal: se houve, ou não, indiferença consciente diante do risco de morte. Sem esse exame, a imputação dolosa permanece juridicamente frágil, ainda que o resultado seja definitivo e não comporte reparação.
A decisão que revogou o habeas corpus não enfrentou esse núcleo conceitual. A ordem caiu por razão estritamente formal — a incompetência do órgão que a concedeu —, sem qualquer reavaliação do mérito penal então examinado. Ainda assim, fora do processo, a derrubada do salvo-conduto passou a ser lida como uma espécie de validação automática da imputação de dolo eventual, o que juridicamente não se sustenta.
Quando concedido, o habeas corpus foi explícito ao registrar que, naquele estágio inicial da investigação, não havia elementos concretos capazes de demonstrar indiferença ao resultado morte, requisito indispensável para a configuração do dolo eventual. O fundamento não era a antecipação de absolvição, mas a constatação de que a narrativa penal construída até então se apoiava mais no resultado do que na demonstração do elemento volitivo exigido pelo tipo penal.
Esse ponto permanece incólume. A revogação do habeas corpus retirou a proteção cautelar, mas não transformou, por si só, uma imputação frágil em imputação sólida. O processo penal não opera por presunções simbólicas nem por atalhos narrativos: ou há demonstração de que o agente assumiu o risco do resultado e foi indiferente à sua ocorrência, ou o campo é o da culpa, ainda que grave.
Em casos de erro médico, essa distinção ganha contornos ainda mais sensíveis. A medicina envolve risco, decisão sob pressão e atuação em ambientes imperfeitos. Justamente por isso, o Direito Penal exige mais — e não menos — rigor conceitual antes de transitar da culpa para o dolo. Confundir falha, erro ou cadeia de eventos com indiferença consciente significa deslocar o sistema penal de seu eixo garantidor para um terreno de punição orientada pelo desfecho.
O caso Benício, portanto, não se resolve com a queda de um habeas corpus. Ele exige que a investigação, o Ministério Público e, se for o caso, o Judiciário enfrentem a pergunta central que o Direito Penal não pode evitar: houve indiferença real diante do risco de morte, ou houve um evento trágico sem adesão subjetiva ao resultado? A resposta a essa pergunta — e somente ela — define o campo da imputação legítima.
Enquanto essa distinção não for enfrentada com seriedade, o debate seguirá tensionado entre comoção e técnica. E o Direito Penal, que deveria funcionar como limite, corre o risco de ser reduzido a instrumento de resposta simbólica a tragédias que, por si só, já dispensam excessos.



