Sentença da Juíza Anagali Marcon Bertazzo reconhece a renúncia à propriedade e determina que o Estado exclua ex-proprietário de débitos e registros no Detran, reafirmando que o tributo deve incidir sobre o possuidor real do bem.
A Justiça do Amazonas reconheceu que o Estado deve responder judicialmente por cobranças de IPVA e registros indevidos mantidos em nome de quem já não é proprietário de veículo automotor, ainda que a transferência não tenha sido concluída pelo comprador junto ao Detran.
A decisão, proferida pelo Juizado Especial da Fazenda Pública, reconheceu a renúncia à propriedade e determinou a exclusão definitiva do nome da autora dos cadastros estaduais, bem como o bloqueio do registro até que o atual possuidor regularize a titularidade.
O caso envolveu uma ação de reconhecimento de inexistência de propriedade, ajuizada por uma cidadã que havia vendido um veículo, mas continuava sendo cobrada por débitos de IPVA e autuações vinculadas ao automóvel, ainda registrado em seu nome.
Legitimidade do Estado e natureza administrativa da controvérsia
O Detran sustentou, preliminarmente, que a questão decorria de negócio jurídico entre particulares e, portanto, escaparia à competência dos juizados fazendários. A juíza Anagali Marcon Bertazzo rejeitou o argumento e destacou que, por envolver registro público e reflexos tributários diretos, a demanda possui natureza eminentemente administrativa, atraindo a competência da Fazenda Pública.
“O Estado é parte legítima para responder à ação declaratória negativa de propriedade de veículo automotor que continua registrado no Detran, um de seus órgãos, em nome do autor que comprova já tê-lo vendido e entregue a terceiro que, entretanto, não efetivou a transferência registral, de modo que anualmente é lançado o IPVA contra aquele, que se vê compelido a pagar tributo do qual já não é mais contribuinte nem responsável”, destacou a decisão, citando precedentes.
A magistrada também citou entendimento pacificado no próprio Tribunal de Justiça do Amazonas, que classifica como matéria administrativa os litígios envolvendo anulação de multas, registros e pontuação de CNH, o que confirma a competência do Juizado da Fazenda Pública (CC nº 0709621-23.2022.8.04.0000).
Tradição como modo de transferência da propriedade
No mérito, a sentença reiterou que, conforme o art. 1.267 do Código Civil, a propriedade de bens móveis se transfere pela tradição, e não pelo registro junto ao órgão de trânsito.
O registro veicular, segundo o juízo, tem caráter meramente declaratório e administrativo, servindo apenas para publicidade e controle estatal, não sendo elemento constitutivo da transferência.
“A ausência de registro no Detran é uma formalidade administrativa que não impede o reconhecimento da transferência da propriedade quando comprovada a tradição do bem”, consignou a magistrada, citando precedentes dos Tribunais de Goiás e Minas Gerais.
Com essa interpretação, o juízo reforçou que a verdade material deve prevalecer sobre a aparência registral, de modo que o Estado não pode continuar tributando quem já alienou e entregou o bem, sob pena de violar o princípio da capacidade contributiva (art. 145, §1º, da Constituição).
Renúncia como forma de perda da propriedade
Sem comprovação documental da tradição, a autora optou por renunciar à propriedade — instituto previsto no art. 1.275, II, do Código Civil — como forma de encerrar definitivamente sua responsabilidade civil e tributária. A juíza reconheceu a validade da renúncia e fixou seus efeitos a partir da data da citação do Estado, momento em que a Administração Pública tomou ciência formal da manifestação de vontade.
“A renúncia à propriedade, nos termos do art. 1.275, II, do Código Civil, constitui causa de perda da propriedade independente da aceitação de terceiros, extinguindo os vínculos de responsabilidade sobre o bem a partir da ciência da Administração Pública”, registrou a decisão, citando precedente do TJ de São Paulo.
A decisão ainda destacou que, diante da ausência de comprovação de tradição, a renúncia se mostra instrumento eficaz para proteger o cidadão de débitos tributários e administrativos indevidos, evitando que o Estado mantenha lançamentos fiscais contra quem já não detém a coisa.
Processo n. : 0037995-32.2024.8.04.1000
