A ABDE (Associação Brasileira de Desenvolvimento) e o Pnud (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) divulgaram recentemente um relatório no qual identificam o volume de recursos dedicados pelas Instituições Financeiras de Desenvolvimento (IFDS) aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, os chamados ODS. [1] O mapeamento envolveu 24 das 34 instituições financeiras associadas à ABDE, dentro do chamado SFN (Sistema Nacional de Fomento).
Não custa lembrar que os ODS são um conjunto de 17 objetivos estabelecidos em 2015 pela Organização das Nações Unidas e seus 193 países-membros, e desse compromisso derivou a Agenda 2030 — um documento com caminhos, ações e metas a serem perseguidas pelas nações para tornar um mundo melhor e mais justas até o fim desta década, incluindo respostas aos desafios globais atuais e transição para um novo paradigma de desenvolvimento.
A Agenda 2030 abrange erradicação da pobreza (1); fome zero e agricultura sustentável (2); saúde e bem-estar (3); educação de qualidade (4); igualdade de gênero (5); água potável e saneamento (6); energia limpa e acessível (7); trabalho decente e crescimento econômico (8); indústria, inovação e infraestrutura (9); redução das desigualdades (10); cidades e comunidades sustentáveis (11); consumo e produção responsáveis (12); ação contra a mudança global do clima (13); vida na água (14); vida terrestre; paz, justiça e instituições eficazes (16); parcerias e meios de implementação (17).
O SNF constitui uma rede de instituições financeiras públicas e privadas de todo o Brasil que atuam em nível regional e nacional com o objetivo de promover o desenvolvimento do país por meio do financiamento a setores estratégicos. O sistema tem papel decisivo, entre outras coisas, na viabilização de projetos, no apoio financeiro a atividades produtivas e na execução de políticas públicas.
Divulgado no último mês de agosto, o relatório mostrou uma boa notícia: o montante de recursos do SNF direcionados aos ODS cresceu 44% em relação ao 2020 (primeiro ano da pandemia da Covid-19) e 5% em relação a 2021, demonstrando um avanço do alinhamento da atuação das instituições de fomento à Agenda 2030. Há dados, no entanto, preocupantes. Pontuando o ODS 5, por exemplo, o relatório apurou que, no triênio 2020-2022, apenas 0,05% do total foi destinado pelas instituições de fomento à igualdade de gênero, chegando a R$ 354 milhões, considerada a menor parcela de investimento, bem depois dos valores destinados à paz, justiça e instituições eficazes (R$ 855 milhões) e à educação de qualidade (R$ 2,04 bilhões). [2]
Como o próprio relatório registra, os recursos destinados à paridade de gênero não estão sendo direcionados proativamente por meio das linhas de financiamento e produtos financeiros na mesma escala que os demais. As causas podem ser resumidas no seguinte:
1) Linhas de crédito disponibilizadas e operações realizadas têm o menor valor do ticket médio, a exemplo de programas voltados a micro e pequenas empresas lideradas por mulheres;
2) Os investimentos não se alinham aos objetivos inquinados, especialmente quanto à igualdade de gênero;
3) O desenho das linhas de financiamento e o padrão do mercado refletem objetivos específicos, não atingindo a questão de gênero.
Embora reconhecendo a ampliação paulatina de investimentos na igualdade de gênero, a despeito do percentual irrisório registrado (o que deve ser acelerado em atenção ao artigo 5º, I, da Constituição e a Agenda 2030), não há menção no Relatório a recursos destinados às pessoas negras e indígenas, mediante políticas públicas específicas, revelando ausência de densidade econômica que poderia caracterizar tais medidas como aceitáveis.
É preciso ponderar que a própria ONU reconhece que a Agenda 2030 falha na igualdade racial e no combate à discriminação. Como já declarou no ano passado Tendayi Achiume, relatora especial das Nações Unidas sobre formas contemporâneas de racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata, promessas para avançar no combate ao racismo e em promover a igualdade racial estão sendo vítimas de “fracos compromissos”. Em seu relatório sobre os ODS e a luta contra a discriminação racial, ela afirmou que são precisos mais compromissos, apesar de algumas melhorias em iniciativas dos últimos anos.
A superficialidade da Agenda 2030 no tratamento do tema tem explicação, ainda que pouco convincente para nós, que vivemos num país de passado escravista e presente racista. A principal delas é a baixa viabilidade de melhorar a incorporação da questão racial no debate internacional. Houve uma importante tentativa, a Declaração e Programa de Ação de Durban, de 2002, um esforço abrangente para combater o racismo e a intolerância relacionada. Mas as “hierarquias internacionais que se movimentam além das visões eurocentristas” — segundo a expressão de Achiume — ainda são um limitador.
Se há limites no plano internacional, é preciso reafirmar alguns regramentos nacionais que podem e devem inspirar as nossas instituições financeiras de fomento.
O Estatuto da Igualdade Racial (Lei 12.888/2010) estabeleceu o dever de inserção prioritária da população negra na vida econômica, social e cultural do Brasil mediante estímulo, apoio e fortalecimento de iniciativas direcionadas à promoção da igualdade de oportunidades e ao combate às desigualdades, com a implementação de incentivos e critérios de condicionamento e prioridade no acesso aos recursos públicos (artigo 4º, VI). De modo ainda mais específico quanto à atividade econômica, preconizou que nos planos plurianuais e nos orçamentos anuais da União haverá políticas públicas voltadas ao incentivo à criação e manutenção de microempresas administradas por pessoas autodeclaradas negras (artigo 56, IV).
Associada ao Estatuto da Igualdade Racial, a Convenção Interamericana Contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatadas de Intolerância, promulgada pelo Decreto 10.932/22, afirma que é obrigação dos Estados Partes formular e implementar políticas públicas com o propósito de proporcionar tratamento equitativo e gerar igualdade de oportunidades para todas as pessoas, por certo havendo que se nomear como preferenciais as negras e indígenas (artigo 6º).
Na confluência desses regramentos de índole constitucional e infraconstitucional, mesmo se admitindo que dentre os ODS não há tratamento da questão racial, se apresenta o marco regulatório da paridade de gênero e da equidade que deve nortear as ações de fomento no Brasil. Observa-se, a partir daí, que as políticas públicas estruturantes devem ser atravessadas pelos objetivos constitucionais de erradicação das desigualdades com enfrentamento da pobreza, que possibilitarão desaguar no desenvolvimento sustentável e na justiça social apoiada nos direitos humanos, bem como na promoção da diversidade para combate ao machismo e racismo estruturais.
Nesse quadrante, os vetores do Sistema Nacional de Fomento devem ser a igualdade e a equidade, impondo a interseccionalidade de gênero e de raça na distribuição dos recursos públicos voltados ao atingimento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. São ações que já se mostram tardias, considerando os prazos e compromissos impostos pela Agenda 2030.
Não há tempo a perder.
Com informações do Conjur