O projeto de reconstrução e asfaltamento da BR-319, rodovia federal que liga Manaus (AM) a Porto Velho (RO), está no centro de uma intensa disputa jurídica, ambiental e política, que também adentrou no âmbito da Suprema Corte.
O tema chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF), por meio da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 1215, ajuizada pelo PSDB. No entanto, a Suprema Corte rejeitou o pedido por razões processuais, sem enfrentar o mérito da suposta omissão estatal quanto à pavimentação da estrada.
A negativa do STF, somada à decisão recente do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1) de suspender novamente a Licença Prévia nº 672/2022, reacendeu o impasse institucional sobre os rumos da BR-319 — símbolo de uma contradição permanente entre o direito ao desenvolvimento regional e o dever de proteção da floresta amazônica.
STF barra ADPF sobre omissão estatal por falta de requisito processual
No julgamento da ADPF 1215, com acórdão publicado em 02 de julho de 2025, o Plenário do STF, por unanimidade, negou provimento ao agravo interno interposto pelo PSDB, que acusava a União de omissão inconstitucional por não concluir a pavimentação da rodovia. A legenda argumentava que o descaso comprometeria direitos fundamentais como dignidade, mobilidade, desenvolvimento e integração regional da população amazônica.
O relator, ministro Luiz Fux, entendeu que a ação não preenchia o requisito da subsidiariedade, previsto no art. 4º, §1º, da Lei nº 9.882/1999. Segundo o ministro, a questão poderia ser resolvida por meios ordinários, inclusive pela via judicial comum, como já vinha ocorrendo, o que inviabilizaria o uso da ADPF como atalho para o controle abstrato de constitucionalidade.
“A ADPF não se presta a tutelar situações individuais e concretas. Permitir isso seria transformar um instrumento objetivo de controle constitucional em ferramenta de judicialização ampla e genérica”, escreveu Fux.
Com isso, a Suprema Corte não analisou o mérito da alegação de omissão estatal quanto à pavimentação da BR-319, deixando o tema nas mãos da Justiça Federal comum.
TRF-1 suspende licença e reacende embate ambiental
Paralelamente, a 6ª Turma do TRF-1 restabeleceu, em 2 de julho de 2025, a liminar que suspendeu os efeitos da Licença Prévia nº 672/2022, concedida pelo Ibama em 2022, durante o governo Bolsonaro. A licença visava viabilizar o asfaltamento do chamado “trecho do meio” da rodovia, entre os quilômetros 250 e 656, que atualmente segue em leito natural.
A decisão acolheu recurso interposto pelo Observatório do Clima, que ajuizou ação civil pública alegando inconsistências legais, técnicas e ambientais no processo de licenciamento. A liminar havia sido inicialmente concedida pela Juíza Federal Maria Elisa Andrade, da 7ª Vara Ambiental do Amazonas, mas foi cassada pelo desembargador Flávio Jardim, relator do agravo da União. O julgamento colegiado reverteu esse entendimento e restabeleceu a suspensão da licença, destacando o risco de danos ambientais irreversíveis e avanço descontrolado do desmatamento.
Segundo o advogado Paulo Busse, representante do Observatório, o licenciamento prévio resultou no aumento de 122% no desmatamento na região e na proliferação de ramais clandestinos:
“Não somos contra a estrada em si, mas sim contra um modelo de desenvolvimento que ignora condicionantes socioambientais mínimas. O STF negou a via abstrata, mas a Justiça Federal reconhece a urgência de medidas preventivas”, afirmou.
Divisão no governo e impasse institucional
O caso da BR-319 também expôs divergências dentro do próprio governo federal. Enquanto a Advocacia-Geral da União (AGU), o Ibama e o DNIT tentam reativar a licença para viabilizar a obra, o Ministério do Meio Ambiente, comandado por Marina Silva, tem se posicionado de forma contrária ao asfaltamento nos moldes atuais, sem garantias de proteção territorial e fiscalização efetiva.
A tensão culminou em maio, quando a ministra foi alvo de críticas incisivas de parlamentares da região Norte durante audiência no Senado e abandonou a sessão em protesto. Para o governador do Amazonas, Wilson Lima, a suspensão da obra é “uma covardia com o povo da Amazônia”, que permanece isolado e dependente de rotas logísticas instáveis.
Pesquisadores de instituições de renome, por outro lado, alertam que a pavimentação descontrolada poderá desencadear grilagem, avanço sobre Terras Indígenas, emissão de gases de efeito estufa e até riscos sanitários decorrentes do desequilíbrio ecológico.
Licenciamento travado e judicialização contínua
Com a suspensão da Licença Prévia em vigor por decisão do TRF-1, o processo de licenciamento permanece travado. O próximo passo, que seria a emissão da Licença de Instalação, está inviabilizado. A AGU deve recorrer da decisão, reativando a disputa em instâncias superiores. Ao mesmo tempo, a ausência de uma resposta do STF ao mérito da controvérsia constitucional reforça o papel da Justiça Federal na mediação desse conflito complexo entre desenvolvimento regional e salvaguardas ambientais.