O caso chegou ao STF após decisões divergentes da 2ª Câmara Cível do TJAM sobre uma reintegração de posse em Manaus. A desembargadora Mirza Telma de Oliveira Cunha primeiro suspendeu a desocupação com base na ADPF 828 e na Resolução CNJ 510/2023, mas depois revogou a própria decisão, ao reconhecer que a invasão era recente (“força nova”) e não se enquadrava no regime excepcional da pandemia.
A ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal, decidiu que o regime de proteção à moradia previsto na ADPF 828, que suspendeu despejos e reintegrações de posse durante a pandemia da Covid-19, não se aplica a ocupações irregulares ocorridas após o período de calamidade pública.
A decisão foi proferida na Reclamação 86.364/AM, em ação que buscava suspender ordem de reintegração de posse em área localizada no bairro Tarumã-Açu, em Manaus. Os autores alegavam violação ao direito fundamental à moradia e descumprimento dos parâmetros da Resolução CNJ nº 510/2023, que estabelece salvaguardas para desocupações coletivas.
Contexto do caso
A reintegração foi deferida pela 8ª Vara Cível e de Acidentes de Trabalho de Manaus, a pedido dos herdeiros de antigo imóvel situado às margens da BR-174, na área conhecida como antiga Colônia Campos Sales, Km 2. Segundo a decisão de primeiro grau, a ocupação irregular começou em maio de 2025, como comprovado por imagens de satélite, levantamento aéreo e boletim de ocorrência, configurando esbulho possessório recente — ou “força nova”, nos termos do art. 558 do CPC.
O laudo técnico apresentado nos autos indicou desmatamento de 39 mil m² em menos de um mês e a construção de cerca de 140 barracas improvisadas. O juízo considerou a invasão recente e autorizou a reintegração imediata, com apoio policial e demolição das estruturas clandestinas.
Reclamação ao Supremo
Na reclamação ao STF, a ocupante alegou que a medida de desocupação atingiria 284 famílias, incluindo 85 indígenas da etnia Kokama, e que a execução sem mediação prévia violaria os parâmetros da ADPF 828 e da Resolução CNJ nº 510/2023. Sustentou ainda que as famílias “residem há mais de um ano e meio na área, pacificamente, sem resistência, em razão da ausência de alternativas de moradia”.
Decisão e fundamentos
A ministra Cármen Lúcia rejeitou a reclamação por ausência de aderência estrita entre a decisão reclamada e o precedente invocado. Para a relatora, a ocupação é posterior ao marco temporal fixado na ADPF 828, que alcançava apenas situações de vulnerabilidade ocorridas até 20 de março de 2020, durante a pandemia.
“O regime de transição fixado pelo Supremo na ADPF 828 visava à retomada gradual de decisões suspensas durante a crise sanitária, não se aplicando a ocupações irregulares ocorridas após o fim da pandemia”, afirmou a ministra.
Cármen Lúcia destacou que a ADPF 828 teve natureza excepcional e temporária, destinada a impedir despejos e remoções enquanto durassem os efeitos sanitários e sociais da pandemia. Com o término do estado de calamidade, restabeleceu-se a plena incidência do regime jurídico ordinário das ações possessórias.
Precedente consolidado
A decisão seguiu precedentes da Primeira Turma do STF, em especial o Agravo Regimental na Reclamação 57.238, relatado pelo ministro Roberto Barroso, que também rejeitou pedido semelhante. Segundo a ministra, a Corte não pode reavaliar, em sede de reclamação, circunstâncias fáticas locais, como a existência de vulnerabilidade social ou eventual omissão do poder público, temas que cabem ao juízo de origem.
Ainda assim, a relatora determinou que a execução da reintegração respeite os direitos fundamentais dos ocupantes, proibindo o uso desproporcional da força e exigindo que as autoridades locais assegurem encaminhamento digno às famílias afetadas.
Síntese jurídica
Com a decisão, o STF reafirma que: A ADPF 828 não possui efeito permanente nem retroativo sobre invasões recentes; O regime de transição instituído em 2022 vale apenas para ordens de desocupação suspensas durante a pandemia; Ocupações irregulares posteriores devem seguir o rito regular das ações possessórias (arts. 560 a 566 do CPC);
As reintegrações devem observar a dignidade humana, a proporcionalidade e a assistência social aos desabrigados.