Em 12 de dezembro de 2024, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) recebeu um pedido inusitado: a impetração de habeas corpus que, ao invés de pleitear liberdade, solicitava a prisão do presidente da Rússia, Vladimir Putin, sob o argumento de cumprimento de decisão do Tribunal Penal Internacional.
O caso foi classificado como “inusitado” pelo presidente do STJ, ministro Herman Benjamin, não apenas pelo personagem envolvido, mas pela contradição entre o pedido e a própria finalidade do habeas corpus, instrumento constitucional voltado à proteção da liberdade de locomoção.
Apesar do absurdo, a petição tramitou formalmente: foi apreciada monocraticamente, submetida à decisão colegiada e chegou até a Vice-Presidência da corte em razão de recursos internos. O episódio se soma aos mais de um milhão de habeas corpus já recebidos pelo STJ, marca histórica atingida em abril de 2024 e que, segundo os ministros da corte, revela tanto o alcance democrático quanto o uso distorcido do instituto.
Previsto no artigo 5º, inciso LXVIII, da Constituição Federal, e no artigo 647 do Código de Processo Penal (CPP), o habeas corpus é gratuito, prescinde de formalidades rígidas e tem tramitação célere.
Originalmente concebido para proteger o direito de ir e vir diante de coações ou ameaças ilegais, o instrumento ganhou centralidade na atuação dos tribunais penais, mas também passou a ser usado de forma inadequada, como mostram alguns casos que se tornaram célebres.
A facilidade de acesso ao Judiciário, impulsionada pelo processo eletrônico, tornou o habeas corpus uma via alternativa para contestar qualquer decisão penal desfavorável, inclusive substituindo recursos cabíveis previstos em lei. Segundo o ministro Ribeiro Dantas, relator do habeas corpus de número 1.000.000, cerca de 70% dos processos nas turmas criminais do STJ hoje são habeas corpus – número que, segundo ele, compromete a principal função da corte: a uniformização da jurisprudência por meio do julgamento de recursos especiais.
Como forma de conter o abuso do instrumento, o presidente do STJ aplicou multa de R$ 6 mil a um impetrante que reiterou pedidos sem respaldo legal, com base no artigo 77 do Código de Processo Civil. Em julgamento do HC 980.750, Herman Benjamin reforçou que o habeas corpus não pode ser utilizado como “brincadeira”, “chicana judicial” ou “estratégia midiática”.
O uso do habeas corpus de forma ampla remonta à tradição brasileira. Ainda no século XIX, o instrumento passou a ser utilizado para corrigir ilegalidades diversas, até mesmo aquelas não ligadas diretamente à liberdade de locomoção. A Constituição de 1891 não restringiu seu uso a esse direito, e só a partir de 1926 é que a garantia foi delimitada formalmente.
Hoje, o Brasil mantém uma interpretação mais flexível do habeas corpus, diferentemente de países com modelos mais restritivos. Segundo o ministro Rogerio Schietti Cruz, essa característica reflete também a memória da ditadura militar, quando o AI-5 suspendeu o uso do habeas corpus em casos políticos, e a Constituição de 1988, ao restabelecê-lo, ampliou seu alcance como reação ao arbítrio estatal.