Reconhecendo que a posse exercida pelo casal havia se transformado, ao longo dos anos, em posse com ânimo de moradia e sem oposição, o juiz Cid da Veiga Soares Júnior, da 1ª Vara Cível de Manaus, declarou o domínio do imóvel situado no bairro Mauazinho, com base na usucapião especial urbana.
O fenômeno jurídico decisivo no caso foi a transmudação da posse originalmente precária — decorrente de contrato de promessa de compra e venda inadimplido — em posse plena e autônoma, apta a fundamentar aquisição originária da propriedade, conforme preveem o art. 183 da Constituição Federal, o art. 9º do Estatuto da Cidade e o art. 1.240 do Código Civil.
Segundo os autos, desde meados de 2004 os autores passaram a exercer a posse do imóvel de forma exclusiva, sem oposição do proprietário, que permaneceu inerte mesmo após notificações extrajudiciais emitidas mais de duas décadas antes.
A prova documental evidenciou pagamento contínuo de tributos, realização de benfeitorias e utilização do imóvel como residência familiar, comportamento que demonstrou inequivocamente o abandono da coisa pelo titular formal e a consolidação de posse qualificada por parte dos autores.
O magistrado destacou que a posse, ainda que derivada de contrato, pode ser convertida em posse com intenção de dono, desde que haja mudança objetiva na causa possessória, fenômeno jurídico conhecido como interversio possessionis ou a inversão da causa da posse.
O fundamento da sentença apoiou-se em doutrina e em precedentes do Superior Tribunal de Justiça, segundo os quais a inércia do proprietário e o cumprimento da função social da posse legitimam a usucapião, mesmo sem justo título e independentemente de boa-fé formal.
“A propriedade deve cumprir a sua função social, o que não se verifica nos casos de abandono. A posse exercida pelos autores há mais de 20 anos se revela autônoma, contínua, mansa e com ânimo de dono, preenchendo os requisitos legais e constitucionais para o reconhecimento da usucapião especial urbana”, registrou o juiz na fundamentação.
A sentença também rejeitou pedido contraposto de reivindicação formulado pela empresa Solimões Imóveis EIRELI, por entender que a via adequada seria a reconvenção e que, no mérito, restou comprovada a perda do interesse possessório da ré sobre o bem.
Ao final, com base no art. 487, I, do CPC, o juízo julgou procedente o pedido inicial e determinou a expedição de mandado para registro do domínio dos autores no cartório de registro de imóveis competente, após o trânsito em julgado. A parte ré foi condenada ao pagamento das custas processuais e honorários advocatícios fixados em 10% sobre o valor da causa.
No processo, os autores foram representados pela Defensoria Pública do Amazonas por meio de ação subscrita pela Defensora Hélvia Socorro Fernandes de Castro Pereira.
Autos nº: 0620467-33.2018.8.04.0001