Por João de Holanda Farias, Advogado
Ao comentar o recebimento do habeas corpus de número 1 milhão pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), o ministro relator do feito, Ribeiro Dantas, declarou que o instituto teria perdido sua essência, sendo atualmente utilizado “para tudo que envolve o processo penal”. Segundo o ministro, a banalização da medida constitucional exigiria uma reflexão sobre sua função atual.
A observação, embora revele preocupação legítima com a sobrecarga da Justiça criminal, não pode ser acolhida sem a devida crítica. Longe de demonstrar um desvirtuamento do habeas corpus, o elevado número de impetrações revela, na verdade, um sistema penal marcado por ilegalidades recorrentes, prisões arbitrárias, persecuções penais viciadas e inércia das instâncias ordinárias frente a violações de garantias fundamentais.
Historicamente, o habeas corpus não se resume à proteção física da liberdade de locomoção. A evolução constitucional e jurisprudencial alargou seu alcance, compreendendo todas as situações em que o status libertatis é ameaçado — desde ilegalidades em prisões até abusos de autoridade e nulidades processuais graves. Rejeitar essa ampliação sob o argumento de que o instituto “perdeu sua essência” é desconhecer o papel que o próprio Poder Judiciário lhe conferiu como instrumento de garantia efetiva.
Se é verdade que o habeas corpus tem sido acionado com frequência, também é verdade que ele se tornou o último recurso frente à lentidão, ao formalismo excessivo e à morosidade das vias recursais tradicionais. O problema não está no instituto, mas na estrutura de um sistema que falha em assegurar os direitos mais elementares dos acusados. A crítica, portanto, deveria se voltar não ao remédio, mas à doença que ele combate: um modelo de Justiça criminal ainda seletivo, autoritário e ineficiente.
Mais grave que o volume de habeas corpus impetrados é a possibilidade de que esse volume seja usado como justificativa para restringir seu uso. Esse tipo de retórica serve, por vezes, de preâmbulo a decisões judiciais que negam conhecimento de impetrações com base em tecnicismos processuais, ignorando o conteúdo das ilegalidades apontadas.
Refletir sobre o uso do habeas corpus é legítimo, mas essa reflexão precisa ser orientada por garantias — e não por conveniências administrativas ou interesses de racionalização institucional. O que está em jogo, ao fim e ao cabo, é a eficácia do controle de legalidade da atuação estatal em matéria penal. Se o habeas corpus tem sido “usado para tudo”, talvez seja porque o sistema penal continua produzindo violações demais.
Reduzir o alcance do habeas corpus não tornará o sistema mais eficiente — apenas o tornará mais cego às suas próprias injustiças.