Na sentença que condenou um empresário a seis anos e nove meses de reclusão por homofobia e lesão corporal grave, além de um ano de detenção por dois delitos de ameaça, a juíza Thatiane Soares, da Vara Criminal de Itacaré (BA), determinou que a Corregedoria da Polícia Civil baiana apure a conduta de uma delegada e adote as providências cabíveis. A agente pública depôs no processo como testemunha do réu.
Conforme a julgadora, o próprio acusado declarou ter passado o dia dos fatos na companhia da delegada, arrolada como testemunha da defesa. “Essa declarada proximidade entre o investigado e a autoridade policial responsável pela apuração dos fatos, quando analisada em conjunto com a cronologia do inquérito, suscita questionamentos sobre a condução do procedimento.”
Os crimes ocorreram no dia 5 de junho de 2021, no município de Maraú (BA). Segundo a sentença, a investigação permaneceu paralisada por “longo e injustificado” período, vindo a receber o impulso necessário somente após a intervenção do Ministério Público, que foi procurado pelas vítimas diante da aparente estagnação dos atos investigatórios.
“A morosidade na condução de um inquérito de tamanha gravidade, que apura crimes de ódio e violência física contra membros de um grupo vulnerável, não apenas obstaculiza a busca pela justiça, mas também tem o efeito deletério de minar a confiança da população nas instituições de segurança pública”, destacou a juíza. Segundo ela, o Estado tem o dever de garantir uma apuração célere e imparcial.
Motoserra
De acordo com a promotora Alicia Violeta Botelho Sgadari Passeggi, o empresário praticou discriminação e preconceito por motivos de orientação sexual contra dois homens que formam um casal. O acusado ainda ameaçou as vítimas e agrediu uma delas com um soco no rosto, causando-lhe lesão de natureza grave atestada por laudo de exame de corpo de delito.
A denúncia narra que o réu, dirigindo-se às vítimas, gritou: “Os viados querem tomar a praia”. O xingamento homofóbico aconteceu após o empresário se deparar com um bloqueio para carros feito pela Prefeitura de Maraú. O acusado utilizava esse acesso para levar o seu barco até o mar e pensou que os ofendidos fossem os responsáveis pela colocação do obstáculo.
Posteriormente, na mesma data, o empresário retornou ao local e destruiu o bloqueio com uma motosserra. Ele ameaçou as vítimas dizendo “viados, filhos da puta, vou dar um tiro na cara de cada um”. Na sequência, agrediu uma delas e só não bateu na outra porque ela correu. O homem lesionado teve o nariz fraturado e desenvolveu transtorno de pânico com crises recorrentes, segundo laudo psicológico juntado aos autos.
“O réu, em vez de utilizar os canais civilizados e legais para contestar o ato administrativo, como um requerimento à prefeitura ou uma medida judicial, escolheu o caminho da violência e da discriminação. Ele não atacou a política, mas as pessoas, utilizando-se da orientação sexual delas como arma para humilhar, subjugar e desumanizar”, destacou a julgadora.
Racismo social
Ao condenar o réu pelo crime do artigo 20 da Lei 7.716/1989 (“Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”), Thatiane Soares se baseou na decisão do Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão 26. Para a corte, a homofobia e a transfobia se enquadram no conceito de racismo em sua dimensão social.
O acusado tentou minimizar a sua conduta sugerindo que as ofensas ocorreram no “calor da emoção”. Porém, a juíza rechaçou essa alegação: “O réu não agiu apenas movido por um impulso momentâneo, mas sentindo-se fortalecido e talvez até imune às consequências de seus atos, dada a sua influência e sua familiaridade com a autoridade policial local”.
Conforme frisou a julgadora na sentença, no caso dos autos, a homofobia não se revelou apenas como um ato de preconceito do acusado em relação às vítimas, mas de poder sobre elas. “Uma demonstração de que, em sua visão distorcida, sua posição social lhe conferia o direito de agredir e discriminar, acreditando contar com a complacência ou o respaldo de uma representante do Estado”.
A juíza fixou o regime semiaberto para o início do cumprimento da pena e vetou a substituição da sanção privativa de liberdade por restritivas de direitos, pois o crime foi cometido com violência a pessoa e as circunstâncias judiciais não indicam a suficiência dessa troca. Por responder à ação em liberdade, o réu poderá apelar solto. A medida cautelar que o obriga a ficar distante das vítimas a no mínimo 300 metros foi mantida.
Processo 8000968-22.2023.8.05.0114
Com informações do Conjur