A Defensoria Pública do Amazonas (DPE-AM) iniciou um Procedimento Coletivo que pretende apurar os fatos para restabelecer os direitos de famílias ribeirinhas residentes na comunidade Santo Antônio, localizada em Novo Airão.
Os moradores relatam que foram enganados por uma entidade autodeclarada como uma Organização da Sociedade Civil (OSC) de caráter missionário que prometeu construir uma escola e, no lugar, ergueu duas casas de alto padrão, além de uma ponte que impede o acesso ao porto comunitário.
A vila fica a 100 quilômetros em linha reta de Manaus, dentro da Reserva de Desenvolvimento Sustentável do Rio Negro (RDS Rio Negro), com acesso unicamente por via fluvial, a partir de Novo Airão, em um deslocamento que dura aproximadamente 45 minutos.
A coordenadora do Núcleo Especializado de Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas e Comunidades Tradicionais da DPE-AM, Daniele Fernandes, esteve na comunidade acompanhada da titular da 2ª Defensoria Pública de 1ª Instância Especializada em Meio Ambiente e Questões Agrárias, Renata Visco, e da defensora responsável por Novo Airão, Saelli Miranda.
O objetivo da comitiva foi ouvir os moradores e exercer a consulta prévia da comunidade acerca da atuação. Esse é um direito previsto em convenções internacionais – Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas e Declaração dos Estados Americanos sobre os Direitos dos Povos Indígenas. De acordo com os depoimentos, esse foi um dos principais direitos desrespeitados pela associação sem fins lucrativos.
De acordo com os moradores, a fundadora da entidade missionária pediu, em 2016, um terreno na comunidade, embora se trate de área de reserva de desenvolvimento sustentável. Foi prometida aos comunitários, a prestação de serviços básicos como atendimentos de saúde e aulas de reforço para as crianças na primeira casa construída. Contudo, apesar de alguns desses compromissos terem sido cumpridos inicialmente, as ajudas pararam de acontecer e o local passou a ser usado em benefício particular dos donos da OSC.
Há dois anos, houve uma expansão do local ocupado, sob a justificativa de que seria construída escola técnica para uso da comunidade, no entanto, em seu lugar, os supostos missionários construíram uma casa de alto padrão, onde hoje moram.
“Quanto aos direitos da comunidade ribeirinha Santo Antônio, identificamos indícios de violações tanto no momento da chegada da organização missionária, quanto durante sua permanência no território. Essas violações abrangem o direito ao território e o direito à consulta prévia, livre e informada, ambos fundamentais para comunidades tradicionais”, observa Daniele Fernandes.
“Embora a organização alegue ter se estabelecido no território com o consentimento da comunidade, os relatos coletados indicam vícios no processo de obtenção desse consentimento. As evidências sugerem que as construções e atividades desenvolvidas atendem exclusivamente aos interesses pessoais e institucionais da organização e de seus fundadores, contrariando os interesses comunitários”, acrescenta a defensora.
“Os comunitários relatam, ainda, o exercício de atividades turísticas no interior da RDS pela organização, sem qualquer consulta prévia à comunidade ou licença emitida pelos órgãos competentes”, conclui Daniele Fernandes.
A partir da construção da ponte, há cerca de dois anos, os conflitos entre os comunitários e a associação missionária ficaram mais intensos. A vice-presidente da Associação de Produtores Agrícolas da Comunidade de Santo Antônio (APACSA), Marineuza Pontes, conta que, certa vez, um jovem indígena foi impedido de passar pelo local.
“Ela (a missionária fundadora da entidade) veio conversar comigo, para falar com o rapaz para que ele não passasse mais por lá, porque isso incomodava eles. Nos Estados Unidos, eles não têm essa cultura. E eu falei que nos Estados Unidos é uma coisa, aqui, dentro de uma RDS, é uma coisa totalmente diferente”, afirma.
Outra promessa não cumprida foi a entrega de uma igreja. As construções começaram, mas restam no espaço apenas a fundação e poucas colunas erguidas pelos próprios moradores.
Sobre a RDS
A RDS Rio Negro foi criada pela Lei nº 3355, em 2008. De acordo com a legislação, toda a atividade realizada no local deve ser aliada ao desenvolvimento social e preservação ambiental, o que, de acordo com o relato dos moradores, também foi desrespeitado.
Exploração ilegal de turismo comunitário
Marineuza acrescenta que, além dos problemas com as obras, os missionários têm causado transtornos à RDS trazendo turistas sem a anuência da comunidade.
“Em março, ela trouxe mais de 100 pessoas. Nós não sabíamos a data, nem o que vinham fazer. Era uma manhã de quarta-feira e entraram dois barcos lotados de americanos, um expresso. Eles ancoraram aí e todo mundo se perguntou ‘Quem é esse pessoal?’. Ninguém sabia”, lamenta a moradora, que completa contando a reação da missionária ao ser procurada para responder sobre o fato: “Ela nem quis receber a gente”.
Conforme os relatos dos comunitários, os turistas são voluntários pagantes que vêm dispostos a contribuir com a comunidade, mas as benfeitorias acabam sendo direcionadas para interesses particulares.
“As missões que estavam vindo eram só em benefício da construção da casa dela e não em benefício da construção da casa que seria a igreja”, relata Marineuza.
Os moradores descobriram ainda que as fotos tiradas em algumas ações sociais realizadas em Santo Antônio com patrocínio de um hotel de selva e da Prefeitura de Novo Airão são expostas no site da OSC como se fossem organizadas pelos missionários, com recursos de doações.
“A internet chegou aqui há apenas dois anos. Antes disso, ninguém sabia que ela postava nada na internet. Tem fotos de crianças comendo a refeição doada pelo hotel e pela prefeitura, e ninguém autorizou”, comenta Helane Souza, filha de um dos fundadores da comunidade.
Diligências
A defensora Renata Visco analisou ainda outros possíveis crimes, com base nos relatos da visita, que indicam uma depredação da fauna e flora locais. “Percebemos aqui o desmatamento. Existe uma área de preservação, uma mata nativa que foi retirada para possibilitar uma construção irregular. Claro que precisaremos de uma análise mais técnica sobre o assunto, mas há indícios sobre a infração”, detalha.
Considerando que a APACSA notificou as irregularidades em julho do ano passado para a Secretaria de Estado de Meio Ambiente (Sema), a DPE-AM enviou ofício para a pasta solicitando informações sobre o andamento do processo de averiguação.
No documento, a Defensoria pede uma cópia do Plano de Manejo da Reserva de Desenvolvimento Sustentável do Rio Negro (RDS Rio Negro), contendo as atividades permitidas no local e questiona se existe algum tipo de concessão dada à OSC para utilização do espaço atualmente ocupado e, ainda, a respeito de medidas adotadas sobre o assunto.
Em resposta, a Sema informou que esteve na comunidade no dia 9 de junho e realizou uma visita técnica. A equipe constatou que as construções “não possuem qualquer tipo de licença ambiental ou autorização emitida pelos órgãos competentes”.
Além disso, foram identificados indícios de crime ambiental, com a “supressão de vegetação nativa do tipo capoeira, realizada sem a devida autorização” e “uso de recursos naturais da própria unidade para fins construtivos, como madeira, cuja origem deverá ser devidamente apurada”.
A defensora Saelli Miranda ressalta a importância de ter uma atuação conjunta entre membros com ações especializadas nesse caso. “Estamos aqui para atuar num caso muito complexo, que envolve questões ambientais, direito de populações ribeirinhas, direito à imagem. Precisamos de defensores com conhecimento técnico em várias áreas para conseguir entender e proteger integralmente o direito dessas pessoas”, disse.
Fonte: Comunicação Social da DPE-AM