A Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça decidiu, por maioria, que a conduta do promotor de Justiça que transforma o silêncio do réu em argumento de autoridade durante o plenário do júri gera nulidade absoluta do julgamento.
O colegiado entendeu que a exploração do direito ao silêncio, em prejuízo do acusado, viola o artigo 478, II, do Código de Processo Penal e o artigo 5º, LXIII, da Constituição Federal.
O caso foi relatado pelo ministro Otávio de Almeida Toledo, mas prevaleceu o voto divergente do ministro Og Fernandes, acompanhado pelos ministros Sebastião Reis Júnior e Rogerio Schietti Cruz, que reconheceram a nulidade da sessão do Tribunal do Júri de José de Freitas (PI) e determinaram a realização de novo julgamento..
O inocente “não se cala”?
Durante os debates em plenário, o promotor de Justiça afirmou reiteradamente que “o inocente tem que provar sua inocência” e que “quem é inocente grita logo por suas provas”. A gravação da sessão, disponibilizada pelo próprio juízo no YouTube, confirmou que o membro do Ministério Público, mesmo advertido pela defesa e pelo magistrado, insistiu na tese de que o silêncio seria incompatível com a postura de um inocente..
O ministro Sebastião Reis Júnior, ao abrir a divergência, sustentou que a fala “subverte a lógica acusatória” e influencia indevidamente o conselho de sentença, composto por leigos, ao atribuir valor probatório negativo a uma garantia constitucional. Para o ministro, “quem é inocente não tem dever de provar nada; o ônus da prova é da acusação”.
Nulidade e limites do discurso acusatório
O relator, ministro Otávio de Almeida Toledo, havia negado provimento ao agravo regimental, sob o argumento de que a menção ao silêncio, isoladamente, não gera nulidade se não houver demonstração de prejuízo efetivo — aplicando o princípio francês pas de nullité sans grief, incorporado ao art. 563 do CPP.
A posição, porém, foi superada. O ministro Og Fernandes, redator do acórdão, afirmou que “a forma como o órgão da acusação conduziu sua explanação não deixa dúvidas sobre a influência no corpo de jurados”, e que “a exploração do direito ao silêncio como indicativo de culpa contamina a imparcialidade do julgamento”..
Presunção de inocência e soberania do júri
O voto vencedor destacou que a soberania dos veredictos do júri não é um manto que legitima violações processuais. Segundo o acórdão, a nulidade decorre da própria ofensa ao devido processo legal, sendo irrelevante discutir se a influência no conselho foi determinante para a condenação.
“O direito ao silêncio não é uma estratégia defensiva, mas uma garantia constitucional que impede que o acusado seja constrangido a se autoincriminar”, concluiu Og Fernandes.
Novo julgamento e efeito pedagógico
Com a anulação, o Juízo da Vara Única de José de Freitas (PI) deverá designar nova sessão do Tribunal do Júri e reavaliar a prisão preventiva do réu, que responde por homicídio qualificado e ocultação de cadáver.
A decisão reafirma precedente que distingue a “mera referência” ao silêncio, que não enseja nulidade, da “exploração como tese acusatória”, que vicia o julgamento. Ao fixar essa linha divisória, o STJ reforça que o discurso acusatório, mesmo sob a retórica da persuasão, está submetido a limites constitucionais de legalidade e lealdade processual.
AgRg no HC 845542 / PI
Número Unico 0284032-91.2023.3.00.0000