A fragilidade presumida da menor de 14 anos não afasta a possibilidade de que, diante das circunstâncias concretas, o réu tenha agido acreditando de boa-fé que a relação ocorria com pessoa plenamente capaz.
A Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) reformou condenação imposta a um homem acusado de estupro de vulnerável ao reconhecer que as circunstâncias concretas do caso evidenciaram erro quanto à idade da ofendida e ausência de efetiva lesão ao bem jurídico tutelado.
O colegiado entendeu que o enquadramento formal da conduta no artigo 217-A do Código Penal não basta, por si só, para caracterizar o delito, quando inexistente ofensa social relevante.
O caso envolveu um relacionamento amoroso entre um jovem de 19 anos e uma adolescente de 13, mantido com conhecimento e anuência da família. A relação resultou no nascimento de um filho, ao qual o réu prestava assistência material e afetiva.
O tribunal estadual havia reformado sentença absolutória de primeiro grau sob o fundamento de que o crime é de violência presumida e não admite relativização, sendo irrelevantes o consentimento da vítima e o vínculo afetivo. Para o juízo local, ainda que o acusado alegasse desconhecimento da idade, as provas indicavam ciência da menoridade, pois o relacionamento durou cerca de 18 meses, período em que a vítima completou aniversário, e ambos residiam na mesma rua.
Súmula 593 e a necessidade de análise concreta do caso
No STJ, a Defensoria Pública estadual interpôs recurso especial sustentando a inexistência de dolo e de lesão efetiva ao bem jurídico protegido pela norma penal.
O relator, desembargador convocado Carlos Marchionatti, acompanhando voto-vista do ministro Reynaldo Soares da Fonseca, acolheu integralmente o pedido defensivo. Segundo o acórdão, embora a Súmula 593 do STJ reconheça a vulnerabilidade absoluta de menores de 14 anos — tornando irrelevantes consentimento, experiências sexuais anteriores ou existência de relacionamento afetivo —, sua aplicação não dispensa a análise das circunstâncias específicas do caso.
A Quinta Turma destacou que, em hipóteses excepcionais, é possível afastar o enunciado sumular e o próprio tipo penal mediante a técnica do distinguishing, quando existirem fundamentos constitucionais e infraconstitucionais que indiquem ausência de reprovabilidade social da conduta. A prevalência da justiça material, afirmou o colegiado, deve orientar a interpretação de casos que envolvem vínculos afetivos estáveis formados entre jovens com pequena diferença etária.
Proteção ao núcleo familiar e prevalência da justiça material
O acórdão ressaltou que, diante de um relacionamento amoroso contínuo e consentido, do qual nasceu uma criança, a condenação paterna poderia representar traumas mais graves à própria vítima e à estrutura familiar constituída.
O colegiado invocou, ainda, o artigo 227 da Constituição Federal e a Lei nº 13.257/2016 (Marco Legal da Primeira Infância), enfatizando que a proteção integral da criança e o princípio da dignidade humana recomendam solução que preserve o núcleo familiar e evite desdobramentos danosos à prole.
Com isso, a Quinta Turma concluiu que a presunção absoluta de vulnerabilidade da menor de 14 anos não impede o reconhecimento, em casos excepcionais, de erro quanto à idade da ofendida, quando o contexto demonstrar boa-fé, estabilidade relacional e inexistência de ofensa real ao bem jurídico protegido.
O número do processo não foi divulgado em razão de segredo judicial.