O Superior Tribunal de Justiça (STJ) confirmou que a capa da revista Veja, publicada em 2015 e que exibia, à época, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva com traje de presidiário, não configurou abuso de direito nem dano moral indenizável.
A decisão, relatada pelo ministro João Otávio de Noronha e publicada neste mês de outubro de 2025, reafirma o entendimento de que prevalecem a liberdade de expressão e o interesse público da informação quando a crítica jornalística se refere a figuras públicas e não há imputação direta de crime.
O acórdão foi publicado no Diário da Justiça Eletrônico Nacional em outubro e teve voto vencido do ministro Antonio Carlos Ferreira, que divergia pela admissão do recurso especial. Acompanharam o relator os ministros Maria Isabel Gallotti, Marco Buzzi e Raul Araújo.
Capa e contexto: o símbolo de uma crise política
A controvérsia remonta à edição nº 2.450 da revista Veja, de 4 de novembro de 2015, cuja capa trazia montagem do rosto de Lula sobre o corpo de um homem vestindo uniforme de presidiário, ladeado pelos nomes de aliados e empresários investigados pela Operação Lava Jato.
O título principal, “Os ‘chaves de cadeia’ que cercam Lula”, era seguido da chamada: “Ele sempre escapou dos adversários, mas quem o está afundando agora são parentes, amigos, petistas e doadores de campanha investigados por corrupção.”
Na reportagem interna, a revista abordava a influência política do ex-presidente sobre o núcleo do Partido dos Trabalhadores e sua proximidade com delatados da Lava Jato. A defesa de Lula alegou que a publicação induziu o público a associá-lo indevidamente à condição de condenado, pedindo indenização por danos morais.
O pedido foi rejeitado em primeira instância e o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) manteve integralmente a sentença, entendendo que não houve imputação criminosa direta nem excesso de linguagem.
Fundamentos do STJ: prevalência da crítica legítima
Ao analisar o agravo interno no recurso especial, o ministro João Otávio de Noronha afirmou que a liberdade de imprensa é pressuposto essencial da democracia constitucional e não pode ser restringida por “sensibilidades individuais de agentes públicos”.
O relator destacou que o conteúdo jornalístico estava vinculado a fatos de relevância pública e que não se comprovou distorção intencional nem intuito de difamar (animus injuriandi vel diffamandi). Para Noronha, a crítica jornalística, ainda que severa, é protegida quando pautada pela ética, pela boa-fé e pelo interesse social da informação.
Ele também citou a ADPF 130/DF, do Supremo Tribunal Federal, que declarou não recepcionada a antiga Lei de Imprensa, consolidando a ideia de responsabilização civil apenas a posteriori. “A repressão ao excesso não se confunde com censura”, afirmou o relator, ao defender que o controle judicial deve ocorrer apenas diante de prova concreta de abuso.
Pessoas públicas e o dever de tolerância democrática
O voto de Noronha reafirmou o princípio segundo o qual pessoas públicas têm proteção reduzida à imagem e à honra, justamente porque suas condutas estão sujeitas à fiscalização social permanente.
“A intimidade dessas pessoas deve ser preservada apenas quando o ato não tiver ligação com o desempenho da atividade pública”, registrou o ministro. “Do contrário, há interesse coletivo suficiente para legitimar a crítica.”
A 4ª Turma reconheceu que o uso de imagens simbólicas e provocativas integra a narrativa jornalística moderna, traduzindo visualmente o contexto político — sobretudo em casos de grande repercussão, como os desdobramentos da Lava Jato.
Limites da responsabilidade e aplicação da Súmula 7
Noronha observou que reavaliar o caso exigiria reexame de fatos e provas, o que é vedado pela Súmula 7 do STJ. Assim, o tribunal não poderia revisar a conclusão do TJ-SP de que não houve abuso.
Essa limitação processual — somada à fundamentação constitucional — transformou o julgamento em precedente reafirmador da jurisprudência da Corte, segundo a qual a liberdade de crítica só perde proteção quando há falsidade deliberada, distorção de fatos ou dolo comunicativo.
Embargos de declaração e novo capítulo do processo
Embora o processo tenha origem em 2015, quando Lula não ocupava cargo público, o julgamento e os recursos mais recentes se dão agora durante seu novo mandato presidencial. A defesa, no último dia 13 de outubro, já interpôs embargos de declaração com efeitos infringentes e de prequestionamento, alegando omissões relevantes no julgamento da 4ª Turma.
Os advogados sustentam que o colegiado deixou de enfrentar questões como a aplicação indevida da Súmula 7 do STJ, a diferença entre crítica e informação sabidamente falsa, e a ausência de análise do Tema 995 do STF, que condiciona a liberdade de imprensa ao binômio “liberdade com responsabilidade”. O recurso aguarda julgamento.
O Percurso
Desde a publicação da capa de 2015, a controvérsia percorreu todas as instâncias do Judiciário, com o uso de todos os recursos previstos em lei, até o mais recente, interposto em outubro do corrente ano. O processo, que já se estende por quase uma década, ainda não transitou em julgado.
A tese da defesa de Lula é a de que a publicação promoveu uma distorção deliberada da realidade, ao apresentá-lo como figura condenada ou associada a criminosos em momento em que não era alvo de investigação nem respondia a qualquer processo penal.
